Language of document : ECLI:EU:C:2015:821

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção)

17 de dezembro de 2015 (*)

«Reenvio prejudicial — Artigo 56.° TFUE — Livre prestação de serviços — Princípios da igualdade de tratamento e da não discriminação — Obrigação de transparência — Âmbito de aplicação desta obrigação — Convenções coletivas nacionais — Regime de proteção social complementar ao regime geral — Designação pelos parceiros sociais de um organismo segurador incumbido da gestão deste regime — Extensão por decreto ministerial deste regime à totalidade dos trabalhadores assalariados e dos empregadores do setor de atividade em questão — Limitação dos efeitos no tempo de uma decisão a título prejudicial do Tribunal de Justiça»

Nos processos apensos C‑25/14 e C‑26/14,

que têm por objeto dois pedidos de decisão prejudicial apresentados, nos termos do artigo 267.° TFUE, pelo Conseil d’État (França), por decisões de 30 de dezembro de 2013, que deram entrada no Tribunal de Justiça em 20 de janeiro de 2014, nos processos

Union des syndicats de l’immobilier (UNIS)

contra

Ministre du Travail, de l’Emploi et de la Formation professionnelle et du Dialogue social,

Syndicat national des résidences de tourisme (SNRT) e o. (C‑25/14),

e

Beaudout Père et Fils SARL

contra

Ministre du Travail, de l’Emploi et de la Formation professionnelle et du Dialogue social,

Confédération nationale de la boulangerie et boulangerie‑pâtisserie française,

Fédération générale agro‑alimentaire — CFDT e o. (C‑26/14),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção),

composto por: T. von Danwitz, presidente da Quarta Secção, exercendo funções de presidente da Quinta Secção, D. Šváby (relator), A. Rosas, E. Juhász e C. Vajda, juízes,

advogado‑geral: N. Jääskinen,

secretário: V. Tourrès, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 22 de janeiro de 2015,

vistas as observações apresentadas:

—        em representação da Union des syndicats de l’immobilier (UNIS), por C. Bertrand e F. Blancpain, avocats,

—        em representação da Beaudout Père et Fils SARL, por F. Uroz e P. Praliaud, avocats,

—        em representação do Syndicat national des résidences de tourisme (SNRT) e o., por J.‑J. Gatineau, avocat,

—        em representação da Confédération nationale de la boulangerie et boulangerie‑pâtisserie française, por D. Le Prado e J. Barthélémy, avocats,

—        em representação da Fédération générale agro‑alimentaire — CFDT e o., por O. Coudray, avocat,

—        em representação do Governo francês, por D. Colas, R. Coesme e F. Gloaguen, na qualidade de agentes,

—        em representação do Governo belga, por M. Jacobs, L. Van den Broeck e J. Van Holm, na qualidade de agentes,

—        em representação da Comissão Europeia, por A. Tokár e O. Beynet, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 19 de março de 2015,

profere o presente

Acórdão

1        Os pedidos de decisão prejudicial têm por objeto a interpretação do artigo 56.° TFUE.

2        Estes pedidos foram apresentados no âmbito de dois processos distintos intentados pela Union des syndicats de l’immobilier (UNIS) assim como pela Beaudout Père et Fils SARL para efeitos da anulação de dois decretos do ministre du Travail, de l’Emploi et de la Formation professionnelle et du Dialogue social, que tornam extensivos à totalidade dos empregadores e dos trabalhadores do setor em causa acordos coletivos que designam uma instituição de previdência como único organismo gestor de um ou mais regimes complementares de previdência ou de reembolso de despesas de saúde.

 Quadro jurídico

3        Em aplicação do artigo L. 911‑1 do Código da Segurança Social (code de la sécurité sociale), na sua versão aplicável aos processo principais, as garantias coletivas de que beneficiam os trabalhadores assalariados em complemento das que resultam da organização da segurança social podem ser determinadas, nomeadamente, através de convenções ou de acordos coletivos. Nos termos do artigo L. 911‑2 desse código, essas garantias coletivas podem abranger a cobertura dos riscos de ofensa à integridade física da pessoa ou ligados à maternidade, em complemento das coberturas que resultam da organização da segurança social. Nos termos do artigo L. 2262‑1 do Código do Trabalho (code du travail), na sua versão aplicável aos referidos processos, a aplicação das convenções e dos acordos coletivos é, em princípio, obrigatória para os signatários ou os membros das organizações ou dos agrupamentos signatários. Todavia, o artigo L. 911‑3 do Código da Segurança Social prevê que estas podem ser tornadas extensivas por decreto do Ministro competente.

4        O referido Código do Trabalho, em especial os seus artigos L. 2261‑15, L. 2261‑16, L. 2261‑19, L. 2261‑24, L. 2261‑27 e D. 2261‑3, regula esse procedimento de extensão.

5        Dele resulta que as convenções setoriais e os acordos profissionais ou interprofissionais celebrados em comissão paritária, bem como os seus aditamentos e anexos, podem, em certas condições, ser objeto de extensão por decreto do Ministro competente, com o objetivo de os tornar obrigatórios para todos os empregadores e trabalhadores assalariados abrangidos pelo âmbito de aplicação da convenção ou do acordo em causa. Tal procedimento pode ser desencadeado quer a pedido de uma organização representativa de empregadores ou de trabalhadores assalariados que façam parte da comissão paritária onde esse acordo foi concluído quer por iniciativa do Ministro competente em matéria de trabalho.

6        Esse procedimento dá lugar à publicação de um aviso no Journal officiel de la République française, que indica o local onde a convenção ou o acordo em causa foi apresentado e convida as organizações e as pessoas interessadas a darem a conhecer as respetivas observações no prazo de quinze dias a contar da data dessa publicação. A Commission nationale de la négociation collective (Comissão nacional para a negociação coletiva) deve ser previamente consultada e emitir um parecer fundamentado favorável. Em caso de oposição fundamentada por parte de, pelo menos, duas organizações de empregadores ou de duas organizações de trabalhadores assalariados representadas nesta comissão, o Ministro pode consultá‑la novamente de modo circunstanciado e, seguidamente, decidir da extensão à luz do novo parecer.

7        Em conformidade com o artigo L. 912‑1 do Código da Segurança Social, na sua versão aplicável aos processos principais, quando acordos coletivos que prevejam garantias de que beneficiam os trabalhadores assalariados determinem uma mutualização dos riscos com um ou vários organismos habilitados a intervir na qualidade de organismos seguradores, a que aderem obrigatoriamente as empresas abrangidas pelo âmbito de aplicação desses acordos, estes devem incluir uma cláusula que preveja o reexame, pelo menos de cinco em cinco anos, das modalidades de organização da mutualização dos riscos.

 Litígios nos processos principais e questões prejudiciais

8        Quanto ao processo C‑25/14, o Conseil d’État afirma que os aditamentos n.° 48, de 23 de novembro de 2010, e n.os 49 e 50, de 17 de maio de 2011, à convenção coletiva nacional do imobiliário instituíram um regime de previdência que abrange os riscos de morte, incapacidade para o trabalho e invalidez, bem como um regime complementar de reembolso de despesas de saúde, para todos os trabalhadores assalariados do setor de atividade em causa.

9        O artigo 17.° do aditamento n.° 48, de 23 de novembro de 2010, designa a Institution de prévoyance du groupe Mornay (IPGM) como único organismo segurador destes dois regimes.

10      Por Decreto de 13 de julho de 2011, o ministre du Travail, de l’Emploi et de la Santé tornou os referidos aditamentos obrigatórios para todos os trabalhadores assalariados e empregadores deste setor de atividade.

11      Por recurso interposto em 23 de setembro de 2011, a UNIS pediu a anulação desse decreto ministerial, com o fundamento, designadamente, de que a IPGM foi designada como único organismo segurador dos referidos regimes sem que tenha sido respeitada a obrigação de transparência que decorre dos princípios da não discriminação em razão da nacionalidade e da igualdade de tratamento que decorrem do artigo 56.° TFUE.

12      Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a IGPM, embora não tenha fins lucrativos e opere com fundamento no princípio da solidariedade, deve ser considerada uma empresa que exerce uma atividade económica e que foi escolhida pelos parceiros sociais de entre outras empresas com as quais está em concorrência no mercado dos serviços de previdência.

13      Quanto ao processo C‑26/14, esse órgão jurisdicional afirma que o aditamento n.° 83, de 24 de abril de 2006, à convenção coletiva nacional da panificação e da pastelaria (empresas artesanais) instituiu um regime de reembolso complementar das despesas de saúde para o conjunto dos trabalhadores assalariados do setor de atividade em causa, com base na mutualização dos riscos cobertos e na adesão obrigatória dos empregadores.

14      O artigo 6.° do aditamento n.° 100 à mesma convenção coletiva designa a AGR2 Prévoyance, uma instituição de previdência, como único organismo segurador deste regime. As prestações e as contribuições relativas ao referido regime são igualmente fixadas por aditamento a essa convenção coletiva.

15      Por Decreto do ministre du Travail, de l’Emploi et de la Santé de 23 de dezembro de 2011, o referido aditamento n.° 100 foi tornado obrigatório para todos os trabalhadores assalariados e empregadores desse setor de atividade.

16      Referindo‑se implicitamente aos n.os 59 a 65 do acórdão AG2R Prévoyance (C‑437/09, EU:C:2011:112), que deixava essa questão à apreciação dos órgãos jurisdicionais nacionais, o órgão jurisdicional de reenvio considera que a AG2R Prévoyance, embora não tenha fim lucrativo e opere com base no princípio da solidariedade, foi livremente escolhida pelos parceiros sociais, na sequência de uma negociação relativa, nomeadamente, às modalidades da sua vinculação, entre as instituições de previdência, as mutuárias e as seguradoras suscetíveis de serem designadas para assegurar a gestão de um regime complementar como o que está em causa. Assim, essa instituição de previdência deve ser considerada uma empresa que exerce uma atividade económica, que foi escolhida pelos parceiros sociais entre outras empresas com as quais está em concorrência no mercado dos serviços de previdência.

17      Todavia, ainda no âmbito da mesma referência implícita ao acórdão AG2R Prévoyance (C‑437/09, EU:C:2011:112), o órgão jurisdicional de reenvio adota a análise feita nos n.os 66 a 81 desse acórdão e, consequentemente, considera que nem o aditamento em causa nem o decreto de extensão são irregulares à luz dos artigos 102.° TFUE e 106.° TFUE. Por outro lado, afasta a alegação de falta de abertura à concorrência à designação do organismo segurador, por não ter relação com esses artigos.

18      Em contrapartida, o Conseil d’État menciona, nas duas decisões de reenvio, o acórdão Sporting Exchange (C‑203/08, EU:C:2010:307), relativo à concessão de um direito exclusivo de explorar os jogos de azar. Salienta que, em conformidade com o n.° 47 desse acórdão, o dever de transparência é uma condição prévia obrigatória do direito de um Estado‑Membro de atribuir a um operador o direito exclusivo de exercer uma atividade económica, independentemente do modo de seleção desse operador.

19      Nesse contexto, esse órgão jurisdicional interroga‑se quanto à questão de saber se o respeito dessa obrigação constitui igualmente uma condição prévia obrigatória à extensão, por um Estado‑Membro, a todas as empresas de um setor, de um acordo coletivo que confia a um único operador, escolhido pelos parceiros sociais, a gestão de um regime de previdência complementar obrigatório instituído em benefício dos trabalhadores assalariados desse setor.

20      Por consequência, nos dois processos principais, o Conseil d’État decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça, em cada um dos processos, a mesma questão, redigida nos seguintes termos:

«O respeito da obrigação de transparência que decorre do artigo 56.° TFUE é uma condição prévia obrigatória à extensão, por um Estado‑Membro, a todas as empresas de um setor, de um acordo coletivo que confia a um único operador, escolhido pelos parceiros sociais, a gestão de um regime de previdência complementar obrigatório instituído em benefício dos trabalhadores [assalariados]?»

21      Por decisão do presidente do Tribunal de Justiça de 29 de janeiro de 2014, os processos C‑25/14 e C‑26/14 foram apensados para efeitos das fases escrita e oral, bem como do acórdão.

 Quanto ao pedido de reabertura da fase oral do processo

22      Por carta entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 8 de abril de 2015, a Confédération nationale de la boulangerie et boulangerie‑pâtisserie française pediu a reabertura da fase oral. Alega, em substância, que certos argumentos, apresentados como essenciais no âmbito do presente reenvio prejudicial, não tinham podido ser debatidos entre os interessados. Trata‑se essencialmente da questão de saber se o mercado em causa no processo principal apresenta um interesse transfronteiriço certo à luz das suas características, bem como das consequências ligadas quer ao caráter autogerido do regime complementar em causa no processo C‑26/14 quer às modalidades de conclusão de um acordo coletivo e aos poderes de que dispõe o Ministro competente quanto à extensão desse acordo no que diz respeito à apreciação a fazer quanto à existência de uma eventual restrição à livre prestação de serviços e à possível justificação da mesma.

23      Há que recordar a este respeito que, em conformidade com o artigo 83.° do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, este pode a qualquer momento, ouvido o advogado‑geral, ordenar a reabertura da fase oral do processo, designadamente se considerar que não está suficientemente esclarecido ou quando o processo deva ser resolvido com base num argumento que não foi debatido entre as partes ou os interessados referidos no artigo 23.° do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia.

24      No caso em apreço, ouvido o advogado‑geral, o Tribunal considera que dispõe de todos os elementos necessários para responder à questão submetida e que esses elementos foram objeto de debate entre as partes.

25      Por conseguinte, o pedido da Confédération nationale de la boulangerie et boulangerie‑pâtisserie française deve ser rejeitado.

 Quanto às questões prejudiciais

26      Com a sua questão em cada um dos pedidos de decisão prejudicial, o Conseil d’État pergunta, em substância, se a obrigação de transparência, que decorre do artigo 56.° TFUE, se aplica à extensão, por um Estado‑Membro, a todos os empregadores e trabalhadores assalariados de um setor de atividade, de um acordo coletivo concluído pelas organizações representativas de empregadores e de trabalhadores assalariados relativamente a um setor de atividade, que confia a um único operador económico, escolhido pelos parceiros sociais, a gestão de um regime de previdência complementar obrigatório instituído em benefício dos trabalhadores assalariados.

27      A título liminar, há que recordar, designadamente, que, relativamente às prestações de serviços que impliquem uma intervenção das autoridades nacionais, como a adjudicação de uma concessão de serviços, a obrigação de transparência se aplica não a qualquer operação, mas unicamente às que apresentem caráter transfronteiriço certo, pelo facto de serem objetivamente suscetíveis de interessar operadores económicos estabelecidos em Estados‑Membros diferentes do Estado a que pertence a autoridade que as adjudica (v., por analogia, designadamente, acórdão SECAP e Santorso, C‑147/06 e C‑148/06, EU:C:2008:277, n.° 24).

28      A este respeito, há que referir que o órgão jurisdicional de reenvio não apurou os elementos necessários que permitam ao Tribunal verificar se, nos processos principais, existe um interesse transfronteiriço certo. Ora, há que recordar que, como resulta do artigo 94.° do Regulamento de Processo, o Tribunal de Justiça deve poder encontrar num pedido de decisão prejudicial uma exposição dos dados factuais em que as questões assentam e o nexo existente nomeadamente entre esses dados e essas questões. Assim, a constatação dos elementos necessários que permitam a verificação da existência de um interesse transfronteiriço certo, do mesmo modo que, em geral, todas as constatações que incumbe aos órgãos jurisdicionais nacionais realizar e das quais depende a aplicabilidade de um ato de direito derivado ou de direito primário da União, deve ser efetuada antes de recorrer ao Tribunal de Justiça (v. acórdão Azienda sanitaria locale n.° 5 «Spezzino» e o., C‑113/13, EU:C:2014:2440, n.° 47).

29      No entanto, devido ao espírito de cooperação que preside às relações entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça no âmbito do processo prejudicial, a falta dessas constatações prévias pelo órgão jurisdicional de reenvio relativas à existência de um eventual interesse transfronteiriço certo não leva necessariamente à inadmissibilidade do pedido se o Tribunal, face aos elementos dos autos, considerar que está em condições de dar uma resposta útil ao órgão jurisdicional de reenvio. É esse nomeadamente o caso quando a decisão de reenvio contém elementos pertinentes suficientes para apreciar a eventual existência desse interesse (acórdão Enterprise Focused Solutions, C‑278/14, EU:C:2015:228, n.° 19 e jurisprudência referida).

30      A existência de um interesse transfronteiriço certo deve ser apreciada com base em todos os critérios pertinentes, como a importância económica do contrato, o local geográfico da sua execução ou os seus aspetos técnicos, tendo em conta as características próprias do contrato em causa (v., neste sentido, designadamente, acórdão Belgacom, C‑221/12, EU:C:2013:736, n.° 29 e jurisprudência referida).

31      No que diz respeito à existência de um interesse transfronteiriço certo, importa salientar que as observações das partes interessadas revelam divergências de opinião quanto a essa questão.

32      Por consequência, a resposta pelo Tribunal de Justiça só é dada desde que um interesse transfronteiriço certo no processo principal possa ser constatado pelo órgão jurisdicional de reenvio (acórdão Enterprise Focused Solutions, C‑278/14, EU:C:2015:228, n.° 19 e jurisprudência referida). Assim, as considerações que se seguem são enunciadas sob reserva de a concessão do direito de gerir cada um dos regimes de previdência complementares em causa nos processos principais para todos os empregadores e trabalhadores assalariados dos setores de atividade em causa apresentar um interesse transfronteiriço certo, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

33      Em segundo lugar, há que recordar que, quando uma autoridade pública torna obrigatório para todos os empregadores e os trabalhadores assalariados de um setor de atividade um acordo coletivo que designa um organismo único encarregado da gestão de um regime de previdência complementar obrigatório durante um período determinado, essa decisão vincula igualmente os que, não sendo membros de uma organização signatária, não foram representados na negociação e na conclusão do acordo em causa.

34      Em terceiro lugar, é por efeito dessa decisão que nasce um direito exclusivo desse organismo (v., neste sentido, acórdão Albany, C‑67/96, EU:C:1999:430, n.° 90). Essa decisão de extensão tem um efeito de exclusão relativamente aos operadores estabelecidos noutros Estados‑Membros e que estariam potencialmente interessados em exercer essa atividade de gestão (v., por analogia, acórdão Sporting Exchange, C‑203/08, EU:C:2010:307, n.° 47).

35      Em quarto lugar, a criação de um direito exclusivo pela autoridade pública implica, em princípio, o respeito pela obrigação de transparência (v., neste sentido, acórdão Sporting Exchange, C‑203/08, EU:C:2010:307, n.° 47). Como tal, o exercício, por essa autoridade, do seu poder de tornar extensivo o caráter vinculativo de um acordo coletivo que designa um organismo único para a gestão de um regime de previdência complementar exige que os operadores potencialmente interessados diferentes do que foi designado tenham tido previamente a possibilidade de dar a conhecer o seu interesse em assegurar essa gestão e que a designação do operador responsável da gestão desse regime complementar tenha decorrido com imparcialidade.

36      Quanto à questão submetida, afigura‑se que, num mecanismo como o que está em causa nos processos principais, é a intervenção de uma autoridade pública que está na origem da criação de um direito exclusivo e que deve, em princípio, ter lugar no respeito da obrigação de transparência que decorre do artigo 56.° TFUE.

37      A este respeito, basta recordar que o objeto da decisão de extensão em causa nos processos principais, a saber, um acordo concluído na sequência de negociações coletivas entre organizações representativas de empregadores e de trabalhadores assalariados de um setor de atividade, não tem como consequência subtrair essa decisão às exigências de transparência resultantes do artigo 56.° TFUE.

38      Resulta da jurisprudência que a obrigação de transparência decorre dos princípios da igualdade de tratamento e da não discriminação, cujo respeito a livre prestação de serviços garantida pelo artigo 56.° TFUE exige. Com efeito, na falta de transparência, a adjudicação a uma empresa situada no Estado‑Membro onde se desenrola o procedimento de adjudicação é constitutiva de uma diferença de tratamento cujos efeitos ocorrem essencialmente em detrimento de todas as empresas potencialmente interessadas situadas noutros Estados‑Membros, uma vez que estas não têm nenhuma possibilidade real de manifestar o seu interesse, e essa diferença de tratamento constitui, em princípio, uma discriminação indireta segundo a nacionalidade, proibida, em princípio, por aplicação, designadamente, do artigo 56.° TFUE (v., neste sentido, designadamente, acórdãos Coname, C‑231/03, EU:C:2005:487, n.os 17 a 19, e Belgacom, C‑221/12, EU:C:2013:736, n.° 37 e jurisprudência referida).

39      Sem impor necessariamente uma obrigação de proceder à abertura de um concurso, a obrigação de transparência implica um grau de publicidade adequado que permita, por um lado, uma abertura à concorrência e, por outro, o controlo da imparcialidade do procedimento de adjudicação (v., neste sentido, designadamente, acórdão Engelmann, C‑64/08, EU:C:2010:506, n.° 50 e jurisprudência referida).

40      Cabe recordar que a questão submetida em cada um dos dois processos apenas diz respeito à decisão pela qual uma autoridade pública decide tornar um acordo coletivo extensivo a todos os empregadores e trabalhadores assalariados de um setor de atividade. Por outro lado, os direitos dos empregadores que não participaram na conclusão desse acordo só são afetados por essa extensão.

41      Assim, em princípio, um Estado‑Membro apenas pode criar um direito exclusivo em benefício de um operador económico tornando obrigatório para todos os empregadores e trabalhadores assalariados de um setor de atividade um acordo coletivo que confia a esse operador, escolhido pelos parceiros sociais, a gestão de um regime de previdência complementar obrigatório instituído em benefício dos trabalhadores assalariados desse setor se a decisão de extensão do acordo coletivo que designa um organismo de gestão único for adotada na condição de a obrigação de transparência ser respeitada.

42      Ora, a este respeito, importa referir, por um lado, que nem o órgão jurisdicional de reenvio nem o Governo francês evocaram possíveis justificações para o facto de o direito exclusivo de gestão de um regime de previdência complementar ser adjudicado sem nenhuma forma de publicidade.

43      No caso em apreço, o Governo francês alega que modalidades como as que envolvem a adoção dos decretos de extensão em causa nos processos principais satisfazem o respeito da obrigação de transparência.

44      Como foi recordado no n.° 39 do presente acórdão, sem necessariamente implicar uma obrigação de abrir um concurso, essa obrigação implica um grau de publicidade adequado que permita, por um lado, uma abertura à concorrência e, por outro, o controlo da imparcialidade dos procedimentos de adjudicação.

45      Ora, nem o facto de as convenções e os acordos coletivos ou os aditamentos aos mesmos serem objeto de depósito junto de uma autoridade administrativa e poderem ser consultadas na Internet, nem a publicação num jornal oficial de um aviso segundo o qual se prevê aplicar um procedimento de extensão de tal aditamento, nem a possibilidade de qualquer interessado dar a conhecer as suas observações na sequência dessa publicação apresentam, mesmo considerados conjuntamente, um grau de publicidade adequado, que permita assegurar que os operadores interessados possam, em conformidade com os objetivos da obrigação de transparência, manifestar o seu interesse quanto à gestão do regime de previdência em causa nos processos principais antes de a decisão de extensão se aplicar com toda a imparcialidade. Com efeito, os interessados apenas dispõem de um prazo de quinze dias para submeterem as suas observações, o que é sensivelmente inferior aos prazos previstos, salvo em caso de urgência, nos artigos 38.°, 59.° e 65.° da Diretiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços (JO L 134, p. 114, e retificação no JO 2004, L 351, p. 44), conforme alterada pelo Regulamento (UE) n.° 1251/2011 da Comissão, de 30 de novembro de 2011 (JO L 319, p. 43), que não é aplicável no caso em apreço, mas que pode servir de quadro de referência a esse respeito. Além disso, segundo as observações apresentadas pelo Governo francês na audiência no Tribunal de Justiça, o Ministro competente limita‑se a um mero controlo de legalidade. Assim, afigura‑se que a existência de uma proposta mais vantajosa que uma pessoa interessada poderia comunicar ao referido Ministro não pode impedir a extensão desse acordo, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

46      Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à questão submetida em cada um dos dois processos que a obrigação de transparência, que decorre do artigo 56.° TFUE, se opõe à extensão, por um Estado‑Membro, a todos os empregadores e trabalhadores assalariados de um setor de atividade, de um acordo coletivo, concluído pelas organizações representativas de empregadores e de trabalhadores assalariados relativamente a um setor de atividade, que confia a um único operador económico, escolhido pelos parceiros sociais, a gestão de um regime de previdência complementar obrigatório instituído em benefício dos trabalhadores assalariados, sem que a regulamentação nacional preveja uma publicidade adequada que permita à autoridade pública competente ter plenamente em conta as informações submetidas, relativas à existência de uma proposta mais vantajosa.

 Quanto à limitação dos efeitos do presente acórdão no tempo

47      Nas suas observações, o Governo francês pede ao Tribunal de Justiça que limite os efeitos do presente acórdão no tempo caso considere que medidas de publicidade como as que envolvem a adoção dos decretos de extensão em causa nos processos principais não satisfazem as exigências resultantes da obrigação de transparência. Essa limitação deveria permitir que esses decretos de extensão pudessem continuar a produzir efeitos até ao termo do período em curso, conforme previsto pelos regimes em causa, e que os efeitos do presente acórdão só se aplicassem a acordos coletivos semelhantes objeto de extensão posteriormente a este.

48      Esse governo alega, por um lado, que pôr em causa a obrigação generalizada de subscrever um contrato junto de um organismo gestor único designado pelos parceiros sociais no quadro dos regimes de previdência complementares existentes teria consequências graves, uma vez que, além dos 142 000 e 117 476 trabalhadores assalariados dos ramos do imobiliário e da panificação, abrangeria cerca de 2 400 000 trabalhadores assalariados, contabilizados todos os setores profissionais. Com efeito, daí resultaria uma violação do princípio da mutualização dos riscos como o que foi implementado, particularmente importante no âmbito desses regimes, que se caracterizam por um grau elevado de solidariedade, o que afetaria tanto o seu equilíbrio financeiro como as garantias que preveem. Por conseguinte, pôr tal obrigação em causa violaria a cobertura de que os trabalhadores assalariados em questão dispõem atualmente no âmbito desses regimes. Além disso, seria suscetível de gerar um contencioso em massa nos órgãos jurisdicionais nacionais.

49      Por outro lado, o Governo francês considera que os atores em causa atuaram de boa‑fé, no estrito respeito da regulamentação nacional em vigor, designadamente quanto à obrigação de reexame periódico, pelo menos de cinco em cinco anos, dos acordos de designação de um organismo gestor e na ignorância de que a obrigação de transparência não teria sido cumprida.

50      A este respeito, importa salientar que só a título excecional o Tribunal de Justiça pode, segundo jurisprudência constante, ser levado a limitar a possibilidade de os interessados invocarem uma disposição que ele tenha interpretado para porem em causa relações jurídicas estabelecidas de boa‑fé (v., designadamente, acórdão Transportes Jordi Besora, C‑82/12, EU:C:2014:108, n.° 41 e jurisprudência referida). Uma aplicação dessa jurisprudência no contexto dos processos principais deve, todavia, ter em conta as especificidades do direito dos contratos públicos, bem como o caráter muito particular da situação em causa nos processos principais.

51      Com efeito, no domínio dos contratos públicos, os artigos 2.°‑D e 2.°‑F da Diretiva 89/665/CEE do Conselho, de 21 de dezembro de 1989, que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas relativas à aplicação dos procedimento de recurso em matéria de celebração dos contratos de direito público de fornecimentos e de obras (JO L 395, p. 33), conforme alterada pela Diretiva 2007/66/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2007 (JO L 335, p. 31), lidos à luz dos considerandos 25 a 27 da Diretiva 2007/66, permitem aos Estados‑Membros limitar, em determinadas condições, a possibilidade de interpor recursos de contratos celebrados em violação do direito da União (v., neste sentido, acórdão MedEval, C‑166/14, EU:C:2015:779, n.os 34 e 35). Daqui decorre que, em determinadas circunstâncias, o interesse em evitar uma incerteza jurídica pode justificar que se faça prevalecer a estabilidade das situações contratuais já executadas sobre o respeito do direito da União.

52      No caso em apreço, a manutenção dos efeitos das decisões de extensão em causa nos processos principais justifica‑se, sobretudo, à luz da situação dos empregadores e dos trabalhadores assalariados que subscreveram, com fundamento nas convenções coletivas objeto de extensão em causa, um contrato de previdência complementar que se insere num contexto social particularmente sensível. Uma vez que esses empregadores e esses trabalhadores assalariados não estiveram diretamente envolvidos no procedimento de extensão, há que reconhecer que assumiram compromissos contratuais que lhes concedem garantias de previdência complementar baseando‑se numa situação jurídica que o Tribunal de Justiça apenas precisou, no que diz respeito ao alcance concreto da obrigação de transparência que decorre do artigo 56.° TFUE, no presente acórdão.

53      Nas condições específicas dos processos principais, há que considerar que os efeitos do presente acórdão não afetarão os acordos coletivos que designam um organismo único para a gestão de um regime de previdência complementar que uma autoridade pública tenha tornado obrigatórios para todos os empregadores e os trabalhadores assalariados de um setor de atividade antes da data de prolação do presente acórdão, sem prejuízo dos recursos jurisdicionais interpostos antes dessa data.

 Quanto às despesas

54      Revestindo o processo, quanto às partes nas causas principais, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quinta Secção) declara:

A obrigação de transparência, que decorre do artigo 56.° TFUE, opõe‑se à extensão, por um Estado‑Membro, a todos os empregadores e trabalhadores assalariados de um setor de atividade, de um acordo coletivo, concluído pelas organizações representativas de empregadores e de trabalhadores assalariados relativamente a um setor de atividade, que confia a um único operador económico, escolhido pelos parceiros sociais, a gestão de um regime de previdência complementar obrigatório instituído em benefício dos trabalhadores assalariados, sem que a regulamentação nacional preveja uma publicidade adequada que permita à autoridade pública competente ter plenamente em conta as informações submetidas, relativas à existência de uma proposta mais vantajosa.

Os efeitos do presente acórdão não afetarão os acordos coletivos que designam um organismo único para a gestão de um regime de previdência complementar que uma autoridade pública tenha tornado obrigatórios para todos os empregadores e os trabalhadores assalariados de um setor de atividade antes da data de prolação do presente acórdão, sem prejuízo dos recursos jurisdicionais interpostos antes dessa data.

Assinaturas


* Língua do processo: francês.